A Bíblia é mesmo de todos

«A Bíblia Manuscrita» chegou ao final neste Domingo O teclado do computador ou do telemóvel são, cada vez mais, o meio que cada um de nós utiliza para registar pensamentos, passar mensagens ou trabalhar, como é o caso. O prazer de escrever à mão, a intimidade com as palavras ou com a Palavra foram recuperados, um pouco por todo o país, ao longo dos últimos três fins-de-semana, numa iniciativa inédita: “A Bíblia Manuscrita”. Já não se utilizam penas nem tinteiros, mas Portugal regressou ao tempo dos monges copistas e, versículo a versículo, copiou a Bíblia à mão. O projecto “A Bíblia Manuscrita”, da responsabilidade da Sociedade Bíblica de Portugal (SBP), organização cristã inter-confessional que promove a Bíblia em colaboração com todas as Igrejas cristãs, juntou milhares de portugueses em 22 “scriptoria”, em todos os distritos do país. Depois do Presidente da República, Jorge Sampaio, ter escrito os primeiros versículos, foi a vez de Santana Lopes escrever os últimos. Aquilo que, por aqui, fomos chamando de “Maratona da Bíblia” foi encerrada pela mão de Pedro Santana Lopes: “as palavras dos sábios são como um aguilhão e, reunidas num livro, são como estacas bem espetadas por um só pastor”, foi o terceiro versículo do Eclesiastes transcreveu, ontem, no Edifício da Alfândega do Porto. “Penso que, nos tempos em que vivemos – que são de muita espuma, de muita superficialidade -, faz bem recolhermo-nos perante palavras que atravessam milénios e que são meditadas, interiorizadas e procuram ser vividas por várias civilizações”, comentou Santana Lopes, que esteve acompanhado pelo Ministro da Justiça, deputados ao Parlamento pelo círculo do Porto, Presidentes de Câmaras Municipais do Distrito e o Governador Civil, além de D. António Bessa Taipa, bispo auxiliar do Porto, e representantes de várias outras confissões religiosas. Nesta última semana, “A Bíblia Manuscrita” foi ter com quem não poderia vir aos “scriptoria”, nomeadamente doentes e reclusos. No Hospital de Sta. Marta em Lisboa e no Estabelecimento Prisional de Tires voltou a verificar-se aquela que já é uma das principais características deste verdadeiro “movimento de cidadania”, como gostam de o denominar os seus organizadores: pessoas que se encontram frequentemente em lados distintos da vida estiveram, agora, lado a lado transcrevendo os textos sagrados e usufruindo, de forma partilhada, de um momento verdadeiramente significativo. Portugal completou duas Bíblias, que de Janeiro até Outubro do ano que vem vão circular pelo país. Depois, uma delas será entregue à Biblioteca Nacional e a outra vai para a Biblioteca de Alexandria. O projecto juntou milhares de caligrafias, de prelados e universitários, escritores e políticos, artistas e operários, reclusos e doentes, crianças e idosos, cristãos e não-crentes. Muitos foram os que participaram na iniciativa e depois pediram para ser voluntários, ajudando as pessoas a preencherem o breve inquérito sobre a Bíblia e guardarem o pedaço de papel onde está a referência do versículo que escreveram. O acolhimento e o entusiasmo excederam todas as expectativas, como foi possível ver ontem no “scriptorium” de Lisboa, onde dezenas de voluntários ajudavam os copistas a transcrever, a todo o vapor, mais de uma dezena de livros. Muitas pessoas, muitos percursos e convicções, uma só Palavra. No átrio da reitoria, todos têm uma ficha de inscrição na mão e um pequeno inquérito. O processo, como tudo o que diz respeito a esta iniciativa, é simples: a cada pessoa é entregue um destacável, onde não consta nenhum elemento de identificação, com 5 perguntas. A SBP procura saber quantas Bíblias tem cada pessoa, quantas vezes a lê, que tradução utiliza, qual o significado que atribui ao texto e qual é a parte que mais aprecia nas Escrituras. Depois de completa a inscrição, cada um esperava na fila, onde se podem ver alguns cartazes com a história da Bíblia e ver algumas das várias actuações que animaram o espaço. Subindo as escadas, chegava-se ao “scriptorium”, onde, apesar do grande número de pessoas envolvidas no processo, reinava uma ambiente de silêncio e serenidade. Este copista transcreveu uma passagem dos Actos dos Apóstolos, um momento não particularmente feliz na vida de São Paulo, ameaçado por aqueles a quem foi anunciar a Palavra. Significativo. Depois de pousar a caneta, o copista levanta-se, dirige-se à saída, onde lhe oferecem um marcador de livros. Ninguém fica indiferente ao que acabou de fazer, nem se esquecerá tão cedo de ter feito parte de um projecto único. “A Bíblia Manuscrita” ajudou a recuperar um pouco da nossa memória comum: Portugal escreveu a Bíblia que julgava conhecer, que todos os dias vê e ouve, mesmo sem saber, mas que muitos esqueceram ou atiraram para o baú das recordações ou limitaram ao espaço de culto de cada confissão cristã. Caminhos de fé Os vários responsáveis locais, contactados pela Agência ECCLESIA, destacaram o entusiasmo e o envolvimento humano que se criou em torno da execução do projecto. A SBP, apesar de não pretender “juntar as pessoas todas numa interpretação única e comum”, manifestou o seu agrado pelo efeito de aproximação e colaboração que o projecto gerou, superando maneiras diversas de estar na sociedade e na fé. Alfredo Abreu, ideólogo e coordenador geral da iniciativa, sublinha que estas equipas coordenadoras foram constituídas por pessoas que não se conheciam antes. “A experiência de trabalhar com pessoas de convicções muito diferentes foi uma surpresa, pela positiva, devido à mesma paixão pelo mesmo texto”, refere. Emanuel Esteves, da equipa coordenadora local de Setúbal, destaca a dimensão espiritual da iniciativa, referindo que “as pessoas, quando saem do scriptorium, estão tocadas pelo conteúdo que transcreveram”. “Temos tido testemunhos, mesmo de não-crentes, deste sentimento de ser tocado pelo texto”, assegura. O projecto “A Bíblia Manuscrita” foi considerado pelos seus promotores, desde o início, como um verdadeiro “movimento cívico”, recusando intenções de proselitismo e propaganda. “Esta iniciativa serve para valorizar a nossa memória comum”, esclareceu Alfredo Abreu, coordenador geral de “A Bíblia Manuscrita”. Além do reconhecimento do património histórico ligado a esta Obra, o presente projecto promoveu a participação geral em vários campos, para que se perceba qual o lugar da Bíblia no futuro. A Pastoral Universitária do Porto promove “cinco diálogos sobre a Bíblia” que visam anular a desconfiança e o desinteresse com que o mundo da cultura e da ciência olham para a Escritura. Para o Pe. António Bacelar, um dos responsáveis por este ciclo de diálogos, estes “têm tido elevado nível científico, razoável participação e – o que muito nos alegra – também de carácter ecuménico”. “O objectivo foi que o projecto da SBP tivesse alguma expressão a nível universitário, com outro tipo de abordagem”, acrescenta. Este responsável assegura que, em Portugal, se começa a viver um outro ciclo, “da convergência, da abordagem respeitosa aos textos da Escritura, num diálogo enriquecedor para todas as partes”.

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