A cruz escondida

Três irmãos idosos sobrevivem numa casa em ruínas na cidade de Homs

A vizinha de cima

A casa é o centro da vida de Remond, Afef e Nawal. Na verdade não é bem uma casa. É quase apenas uma ruína desde que uma bomba atingiu o prédio logo nos primeiros anos da guerra na Síria. Os três irmãos são já idosos e só conseguem sobreviver graças à ajuda da Igreja local e de instituições como a Fundação AIS. E, claro, da vizinha que mora no andar de cima e que todos os dias faz questão de os visitar…

Quando batem à porta, já sabem que deve ser a vizinha de cima. É raro o dia que Sara não desce as escadas ainda esfaceladas pelas bombas até à casa de Remond e das duas irmãs, Afef e Nawal. Normalmente, Sara vem com a sua filha, Maryam. Normalmente, os três irmãos recebem-nas na sala, junto ao fogão, onde uma chaleira ao lume já a fumegar indica que o chá está quase pronto. Num país que viveu os últimos oito anos em guerra, os pequenos gestos do dia-a-dia ganham uma importância extraordinária. Devolvem o sentido da normalidade, dão segurança. “Querem uma xícara de chá?” – pergunta Afef sabendo já a resposta de antemão. “É muito bom os vizinhos visitarem-nos de vez em quando”, reconhece Afef. É importante haver companhia. É importante acreditar outra vez no futuro. Remond Ziade é o mais velho dos três irmãos. Tinha 72 anos quando a guerra começou em Homs. Foi em 2011. Um ano depois, era já quase infernal permanecer ali. Mas eles iam para onde? Todos os que puderam abandonaram a cidade. Foram ficando apenas os mais idosos e os que por serem tão pobres não tinham outro lugar para onde escapar. Remond recusou sempre abandonar a sua casa até ao dia em que uma bomba rebentou mesmo no prédio. Foi um sobressalto enorme. “Um dia, estávamos a dormir quando nos assustámos com o rebentamento de um morteiro”, recorda Nawal Ziade, de 74 anos. “O tecto da sala desmoronou, juntamente com a parede que separava o quarto. Nem sei como estamos vivos para contar isto…”

Marcas invisíveis

É Nawal que recorda esse dia que parecia ditar o fim da presença da família em Homs. É ela que fala pois o irmão, mais velho, mal consegue dizer alguma palavra, mal consegue sequer andar. Quando a casa quase veio abaixo com o rebentamento do morteiro, todos tiveram de partir. “Fomos evacuados de Homs”, recorda uma vez mais Nawal. Mas quando a guerra perdeu intensidade, quando os combates abrandaram, decidiram regressar. “É a nossa casa, não temos um lugar melhor para onde ir…” Quando Sara e a filha batem à porta já sabem que vão ser acolhidas com sorrisos, com conversas que se alongam aos tempos anteriores à guerra e com uma xícara de chá perfumado. É à volta do chá, à volta do fogão da sala que gira toda a conversa. O fogão marca presença com uma chaminé que se prolonga até ao tecto. Uma engenhoca permite que ele funcione a gasolina, um bem muito precioso e caro nos dias que correm na Síria. Se não fosse o fogão, seria impossível aos três irmãos sobreviverem ao rigoroso inverno. Os combustíveis são caros em Homs, assim como em toda a Síria. Tal como os alimentos e os medicamentos. Não é fácil sobreviver na Síria nos dias de hoje. Vale a solidariedade de uns para com os outros, a rede de assistência que a Igreja montou, com o auxílio de instituições como a Fundação AIS, e vale a certeza da fé. Reymond, as irmãs, tal como Sara e a filha, todos sabem que é graças à generosidade dos benfeitores da AIS que as suas casas estão a ser reparadas, que as crianças estão a regressar às escolas e que já não se passa fome apesar das enormes dificuldades que ainda existem. “Aqui, muito perto de nós, temos a Igreja de San Marón. Praticamente vamos à missa todos os dias”, diz Nawal. Também quase todos os dias, sempre que a meio da tarde alguém bate à porta, Reymond e as irmãs já sabem que, muito provavelmente, é a vizinha de cima que lhes vai fazer uma visita. É assim, com pequenos gestos, que se reconstrói o futuro num país devastado pela guerra.

Paulo Aido | www.fundacao-ais.pt

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