A representação como «serviço aos semelhantes» de Ruy de Carvalho

Ator vai receber prémio Árvore da Vida/Padre Manuel Antunes 2018, da Igreja Católica

A Igreja Católica decidiu atribuir ao ator Ruy de Carvalho o prémio Árvore da Vida/Padre Manuel Antunes 2018 num reconhecimento da sua vida e obra. Em parceria com a Rádio Renascença e o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, a ECCLESIA conversa com o ator português no Teatro da trindade, palco onde se estreou.

Aos 91 anos diz que gostaria de vir ainda a subir ao palco para fazer de palhaço, «um palhaço simpático, para dizer coisas que podem melhorar os homens». Pessoa de fé, deve à sua esposa, com quem partilhou a vida durante 62 anos, o valor da família e ao público o carinho com que sempre o tratou. Diz que gosta mesmo é de representar e que esta é a sua forma de servir.

Entrevista conduzida por Lígia Silveira e Maria João Costa

 

Agência Ecclesia (AE) – Em 75 anos de carreira, que importância tem este reconhecimento da Igreja católica?

Ruy de Carvalho (RC) – É muito importante. Não esperava. Foi uma surpresa muito grande e honra-me muito. Olharam para a minha vida e acharam que eu era, realmente, uma árvore de vida.

Tive frutos muito bons, fiz ramagens muito bonitas, tive primaveras maravilhosas na minha vida. Tive momentos com mais tempestade, menos tempestade que acontece às pessoas. Mas sempre com muita fé. Eu sou um homem de fé, não sei se sou um católico perfeito, mas sou um cristão perfeito, porque me preocupo muito com o que preocupou Cristo, que foram os seus semelhantes. É preciso dar amor. Se dermos amor uns aos outros vivemos em Cristo. Portanto, se é por aí que pegam na Árvore da Vida e a Igreja achou que eu merecia este prémio, eu estou muito honrado.

 

AE – O júri destacou o sentido exemplar da seriedade profissional do Ruy. Essa seriedade é uma marca da sua vida e também da sua vida profissional.

RC – Eu acho que sim. Faço o possível por viver igual a todos os meus semelhantes. Não sou diferente de ninguém, tenho é jeito para representar. É a minha qualidade, é o meu serviço aos meus semelhantes. Representar o melhor que sei e posso, com algumas dificuldades. Nem sempre é fácil, nem sempre é fácil encontrar aquilo que nos querem vestir, mas é uma profissão muito bonita e dá gozo.

E há coisas engraçadas que nos acontecem. Nós não espirramos em cena, não temos dores em cena, esquecemos as coisas. Talvez porque entramos noutra pessoa, figura ou corpo. Há coisas que não nos acontecem.

Neste Teatro onde estamos a fazer a entrevista aconteceu-me muita coisa. Teatro da Trindade é muito bonito, chama-se Trindade.

É um momento muito simpático da minha vida, chamemos-lhe assim, e estou muito grato.

 

AE – O facto de a Igreja ir acompanhando o que o mundo da cultura faz, é importante nesta altura?

RC – É muito importante. Eu sou franciscano, fiz a vida de São Francisco de Assis. E estou muito feliz porque tenho um Papa que se chama Francisco. Ele escolheu o nome que eu escolheria se fosse Papa. Já fui, como ator, e já fui cardeal.

Hoje estou muito contente porque tenho um Papa que se chama Francisco que ainda não mudou as botas. Já repararam? A maior parte das pessoas ainda não olhou para os pés do Papa. Ele ainda não calçou as sandálias, continua na Terra e é o pároco do mundo. Ele hoje é padre de todos nós.

 

AE – Criar momentos de diálogo entre a Igreja e a cultura, é importante, no seu entender?

RC – É claro que sim e as pessoas gostam de dialogar. Se tiverem um interlocutor que facilita o diálogo é bom.

As pessoas falam à vontade com ele, com prazer. Eu não vi ninguém se não a querer beijá-lo, a querer abraçá-lo, a ter um aconchego dele. Aquilo que os párocos devem fazer aos seus paroquianos, aconchegá-los. Ajudá-los a viver melhor e ele faz isso ao mundo. E está muita gente a fazer as pazes com a Igreja.

Devemos dizer a verdade, houve momentos maus da Igreja, mas que foram redimidos e ele já pediu perdão por eles. Coisas que foram acontecendo e acontecem aos homens e em qualquer sociedade.

 

AE – Em 91 anos de vida o Ruy de Carvalho acompanhou muitas fases da Igreja, alguns Papas, algumas formas diferentes de estar na Igreja.

RC – O Papa João XXIII mudou um pouco a Igreja. O João Paulo II abriu caminho também pela forma como agiu. Gostava muito do João Paulo II, foi uma figura muito importante da Igreja. Foi um grande representante de Cristo na Terra. E agora têm outro, grande seguidor de Cristo.

 

AE – O Ruy diz que é profundamente cristão, mas ao mesmo tempo que não é um crente absoluto? Que crente é Ruy de Carvalho?

RC – Eu acho que sou um bom cristão, talvez não seja um católico muito cumpridor. Um dia um padre disse-me algo muito bonito. Fui a um local chamado calvário, uma obra do padre Américo, em Penafiel, e entrei na capela e perguntei ao sacerdote onde é que se dava a missa. E ele disse: «Missa fazemos nós lá dentro nas chagas de Cristo.» Eram os doentes que lá estavam, esses são que nós temos de tratar. A missa passa-se ali.

 

AE – Ser cristão, para si, passa por uma prática junto do seu semelhante?

RC – Exatamente, isso é que é ser cristão. Era o que fazia Cristo. Estar junto dos seus semelhantes e tentar melhorá-los, mesmo aos que não estavam bem. A missão do verdadeiro cristão é converter os que não estão bem mas com o coração, com amor. O amor converte e consegue modificar as pessoas. Nos animais sentimos isso. Quando damos amor a um animal que foi abandonado ele tem uma gratidão extraordinária e muda a sua maneira de estar: deixa de rosnar, morder ou ladrar constantemente e começa a querer festas e a encostar-se a nós.

 

AE – Estreou-se no Teatro da Trindade há 76 anos. O nervoso e o respeito pelo público hoje são os mesmos?

RC – Hoje tenho mais respeito pelo público, pelos meus colegas e por mim. Humildade é uma palavra muito bonita que começa connosco, na nossa forma de estar, nos nossos colegas, a quem nos vê, a quem servimos que é o público. Todos somos pessoas, a nossa obrigação é não querer ser mais, servir sem nunca ser superior, maior ou mostrar mais conhecimento.

O amor igualiza as pessoas e até os animais sentem.

 

AE – Quando fala em representação fala em serviço. Qual é hoje, para si, o poder do teatro, da representação?

RC – Em Portugal é pouco. Há pouco teatro em Portugal. A cultura está um pouco abandonada. Não conta. Andamos a pedir 1% do orçamento de Estado, é muito pouco. Quando há outras coisas que levam muito dinheiro e não são tão úteis. A saúde é útil, a educação é útil, mas há outras coisas que levam dinheiro. Os bancos deveriam ter tido mais juízo no dinheiro que emprestavam. Houve muita corrupção em Portugal e temos de combater. Temos de encontrar o bem.

 

AE – Não se valoriza a cultura o suficiente?

RC – Não. A cultura é a arca do tesouro de um povo. Quem tiver uma grande arquitetura, escultura, pintura, um bom teatro, uma boa música, grandes artistas e interpretes, tudo isso é uma grande riqueza que um povo tem, e essa riqueza é fundamental, tal como a ciência e o desporto.

Estamos muito virados para coisas que não deixam um homem raciocinar e por em prática o que aprende na escola. Temos de ter um sentido crítico e construtivo, saber viver com os nossos semelhantes e, sobretudo, viver em liberdade que é muito difícil. Exige respeito por tudo o que é nosso, não só as coisas imateriais como a materiais. É preciso respeitar os locais onde estamos, não destruir o que pertence a todos e fazer cada vez mais belo tudo o que habitamos.

Viver em liberdade está a acontecer lentamente em Portugal, mas ainda há muita libertinagem. Temos factos evidentes e coisas que aconteceram há pouco tempo que mostram que há libertinagem e não liberdade. A liberdade é algo muito bonito que se resolve com diálogo. Quem dialogar e conversar talvez consiga resolver as coisas mesmo que a discussão seja acalorada.

 

AE – O Ruy diz que quando pisa um palco é ator mas quando desce é um cidadão. Que importância tem essa intervenção cívica?

RC – É a minha forma de ser. Não preparei isso. Ensinaram-se, os meus pais eram assim, os meus filhos são assim. Fui transmitindo esse espirito de serviço.

Nós vivemos coletivamente, não somos sozinhos, vivemos com os outros tanto no teatro como na vida. Nós fazemos parte de uma família, que é uma coisa muito bonita. Integramos uma família muito grande, os portugueses, os franceses, os espanhóis são famílias. Mas depois há a família universal e os homens são todos iguais, tenham a cor que tiverem, tenham a política que tiverem. Desde que não tenham políticas destrutivas e não façam mal aos seus semelhantes.

 

AE – Encontra espaço na sociedade para colocar essa intervenção cívica, para passar os seus valores que são, no fundo, de coesão social?

RC – Julgo que me conduzo na minha vida mostrando isso precisamente. O convívio, a humildade com que lidamos com os nossos semelhantes, a forma de estar, o espirito com que fazemos o nosso trabalho, é muito importante e os outros sentem. As pessoas sentem o respeito que temos por elas. Sentem e gostam de ser respeitadas.

Consola-me muito o ser estimado, sou beijado. Dizem-me coisas muito bonitas na rua. Às vezes fico admirado porque desconhecia ter essas qualidades todas. Eu sou igual.

 

AE – Mesmo que lhe mostrem esse afeto diariamente, já o ouvi dizer que é como beber água, precisa desse carinho do público todos os dias.

RC – Exatamente e sinto-me muito bem. Antigamente tinha medo de entrar no palco, na vida nunca tive medo. Não me ensinaram a ter medo da vida. Os meus pais ensinaram-me a enfrentar a vida com as suas facilidades e dificuldades. E fiz isso a vida toda. Vivi em vários locais, convivi com vários tipos de sociedade. Vivi em África, vivi na Beira, vivi em Lisboa. Corri parte do mundo. Gosto muito de África, tenho grande paixão por África, pelo seu cheiro e pela sua gente. Já fui minoria numa terra onde só havia pretos. Eu era a minoria e era estimado, brinquei com rapazes que hoje têm 90 anos como eu, se ainda viverem.

 

AE – Essa experiência deu-lhe abertura e tolerância ao mundo?

RC – São coisas que educam se estivermos atentos. Se estivermos atentos aos nossos semelhantes e às suas ações, tentamos melhorar aqueles que fazem mal, se pudermos e deixarem, porque às vezes não deixam. Há pessoas que nascem doentes. Muito da maldade que existe no mundo é doença, são pessoas que não nascem bem. Há pessoas que são amorais, não sabem o que é educação e respeito. Se tentarmos que eles mudem pelo nosso exemplo, melhor é.

 

AE – Houve alguma personagem que representou e que se arrependa de a ter representado?

RC – Não. Tenho uma coisa que me magoou muito, quando era novinho com vinte e poucos anos. Foi uma peça infantil que foi feita em cima do joelho. Nesse dia chorei em cena porque não gostei do trabalho que fiz, nem do meu nem dos meus colegas. Foi uma coisa mal fabricada e para crianças deve-se dar o melhor.

 

AE – Houve alguma personagem que transmitisse valores com os quais o Ruy de Carvalho não se identificasse?

RC – É claro que sim. Há personagens que magoam. Já fiz vários. Um bêbado, por exemplo. Já fiz bêbados de vários tipos: frustração, alcoólicos, são todos diferentes. Como ator acho interessante fazer uma pessoa com a qual não concordo.

 

AE – Com 76 anos de profissão, chega a casa despedido da personagem?

RC – Completamente. Acaba quando acaba o espetáculo. Levo o corpo e a voz, mas isso não posso tirar. Mas não vou para a rua pintado.

 

AE – Esses valores que lhe são estranhos que tem de vestir por causa da personagem, não se misturam com a sua personalidade, não há linhas ténues?

RC – Há coisas que se mantêm: o cuidado na forma de sentar e falar. Aprendemos a mexer-nos com o fato que vestimos e com a situação que vivemos.

 

AE – Vai transmitindo esses ensinamentos às novas gerações que trabalham consigo?

RC – Acho que sim, mas não imponho nada. Ajudo se eles quiserem. Eles começam a perceber que eu sou capaz de ajudar e perguntam coisas. Tenho o maior prazer nisso. Tenho um filho e um neto ator. Tive dois irmãos atores. Há um contacto muito grande com a arte de representar.

E, sobretudo, o sangue novo. Os novos que vêm trazem a reciclagem. É muito mau viver na experiência. A experiência é evolutiva, temos de caminhar com as novidades que os mais novos vão trazendo.

 

AE – Também alimentam a sua energia.

RC – Normalmente chamo de caos. Eles trazem ideias novas, é tudo mais fácil. É claro que depois assenta como as borras do café que vão ao fundo. O que não é bom vai-se embora e o que é bom fica.

 

AE – Numa sociedade instantânea, até do efémero em alguns aspetos, as novas gerações encontram, no seu entender, o verdadeiro significado da representação?

RC – Estou neste momento a trabalhar com jovens com muito talento e muita qualidade. Isso dá-me uma grande alegria. Quando eu partir, vou partir um dia destes, não é? Ninguém cá fica para compota. Há quem continue o teatro em Portugal e espero que os que mandam continuem a apoiar a cultura, o teatro, a música, o bailado, a escrita, a escultura, a arquitetura que é o que vai ficando e que marca a evolução das épocas.

 

AE – O Ruy está a ensaiar uma nova peça, mantem o espetáculo «Trovas e Canções» com o seu filho, faz também televisão. Fez cinema, teatro. Onde é que o seu coração está?

RC – Aqui, no teatro. Mas eu gosto é de representar. No fundo, representar para a televisão tem uma técnica, o teatro tem outras especificidades, são técnicas diferentes. O cinema e a televisão são semelhantes, embora o cinema seja mais lento, plano a plano. Eu gosto no fundo de representar para todos.

 

AE – Mas o que é que o fascina no teatro?

RC – Aqui há calor. Aqui sentimos tudo o que vem dali (aponta para a plateia). A atenção, o estar a gostar ou não, o interesse ou desinteresse. Sentimos tudo: o que fazem, as carteiras que fecham, os rebuçados que se desembrulham, os amendoins que se comem, os telemóveis que tocam. Tudo isto sentimos no placo. Não devemos olhar, mas há uma forma de teatro em que se pode olhar que é a revista. O público de revista conversa com os atores. É muito difícil fazer revista e um ator de revista tem de ter muita empatia. Está abandonado este género.

 

AE – A revista é um género de crítica social.

RC – Hoje devia haver formas de fazer crítica como havia com «Os Ridículos» (jornal de 1895) e o «Sempre fixe» (semanário humorístico publicado em Lisboa, em 1926), jornais que a censura cortou e que faziam crítica humorística a situações nacionais.

Hoje, com a televisão, podíamos ter uma boa crítica política, porque os políticos precisam ser criticados. Bastante. E os homens também. Eu acho que havia gente que podia fazê-lo com muita graça, como os alentejanos. Há casos políticos e sociais que podiam ser criticados.

 

AE – Estamos neste palco do Teatro da Trindade. Ainda se lembra do 1º dia?

RC – Estava no local que designamos por direita baixa, que corresponde à nossa esquerda. Estava metido no sítio do Satanás e vinha à frente fazer as minhas maldades. Lembro-me perfeitamente (na peça «O Jogo para o Natal de Cristo», 1942).

 

AE – Com o Ribeirinho a dirigir?

RC – Precisamente. Comecei a fazer teatro muito novo com um grande profissional que foi um mestre para a minha geração.

 

AE – Tem uma memória muito viva do tudo o que conta. Lembra-se com precisão.

RC – E se continuássemos a conversar, ia-me lembrar de mais coisas. Sim, tenho uma memória ainda boa. Talvez precise mais tempo para decorar mas ainda decoro bem e às vezes até me admiro como decoro tão bem. Depende da escrita: há quem escreva com mais facilidade. Há escritores complicados.

 

AE – Um ator vive do exercício da memória.

RC – E sobretudo do respeito daquilo que vai dizer como ator. Não foi dito nem inventado por ele. Foi escrito por uma pessoa a quem temos de respeitar porque foi quem escreveu o texto.

Não posso improvisar Eça de Queiroz ou o Camilo Castelo Branco. São pessoas que têm o seu estilo como o Alexandre Herculano, o Almeida Garrett, o José Saramago, o Manuel da Fonseca, o José Cardoso Pires, com quem fiz uma peça «O Render dos Heróis», em que fazia de cego que personificava o povo português.

É uma figura que me marcou muito, um escritor que merecia o Nobel da Literatura, mas dentro de mim está o Nobel para o José Cardoso Pires.

 

AE – Que valor tem a família na construção da sua vida e até da sua carreira profissional?

RC – Foi fundamental. Eu tive uma mulher extraordinária. Foi bailarina e licenciada em História e Filosofia, com uma cultura muito interessante. E artista. Com uma grande capacidade de compreensão. Eu é que era a sombra e ela a pessoa.

Abdicou de muita coisa para criar os filhos. Podia ser professora mas achou que a sua vida seria melhor em casa e deu-me a responsabilidade de aguentar materialmente. O que na minha profissão fiz com algumas dificuldades, com alguns momentos terríveis, que não foram fáceis, mas que fui sempre ocultando dos meus filhos que estavam a crescer e dela, sobretudo. Ela nunca sentiu os momentos maus da minha vida. Eu estava ativo. Às vezes a parte económica não estava bem mas eu arranjava maneira de no final do mês ela ter sempre o dinheirinho para a casa.

 

AE – Era importante mostrar que estava tudo bem, apesar das dificuldades?

RC – Eles não tinham de sofrer o que eu estava a passar. As pessoas não têm que sofrer o que os outros sofrem, mas devemos aliviar a vida e fazê-los mais felizes. Embora a nossa felicidade não seja muito grande, a nossa responsabilidade é grande.

 

AE – A Rute foi para si um testemunho de fé?

RC – A minha mulher sim. Foi diretora de uma catequese durante 28 anos e esteve mais tempo como catequista. Fez um bom trabalho, julgo, na igreja de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica. Era muito estimada. Tinha uma fé sem limites.

Aconteceu uma coisa engraçada connosco: durante 15 anos vivemos privados da bênção da Igreja porque casámos só pelo civil. Eu acho que o casamento pela Igreja é uma bênção e só se deve abençoar o que é bom. Abençoar uma coisa que falha no segundo ou no terceiro ano não vale a pena.

As pessoas têm que saber amar e conseguir viver 15 anos amando-se, ou 20 ou 53 como eu vivi, com mais nove de namoro. É preciso saber viver a vida em conjunto com muito respeito e, sobretudo, muito amor. E transmitir isso aos que vão sendo produto do nosso amor: os filhos, os netos. Tenho bisnetos. Sou um homem rico, nesse aspeto.

 

AE – E a fé vai sendo transmitida às gerações mais novas…

RC – Todos eles praticam o cristianismo. São todos cristãos.

 

AE – Para si é importante?

RC – É muito importante. Tenho muita fé, sou um homem de fé. Gosto muito de Nossa Senhora de Fátima. É a mãe de Deus, não é?

 

AE – Estamos no Teatro da Trindade, onde se estreou. O que lhe falta fazer em palco?

RC – Eu agora faço o que querem que eu faça. Nunca escolhi o meu trabalho. Normalmente dizem que serei capaz de fazer isto ou aquilo e eu faço. E dá-me um prazer excecional. Adorei fazer o Rei Lear, o Rómulo Grande.

 

AE – Com o coração a pender para o teatro, há algum texto que gostasse de levar à cena?

RC – Eu gostava de fazer um palhaço. Gosto muito de palhaços, no fundo, também sou um palhaço. Ainda não fiz nenhum, verdadeiramente.

Um palhaço com as suas qualidades e defeitos. Com o nariz encarnado, tem de ser simpático e de saber dizer as coisas que podem melhorar os homens. Mostrar aos homens os seus defeitos. E o palhaço pode fazer isso.

 

AE – Num pequeno jogo de palavras, pergunto-lhe o que diz de si a palavra humildade?

RC – A palavra humildade é muito bela na língua portuguesa. Há uma grande confusão porque há quem ache que subserviência é um ato de humildade. Não é. A humildade é um ato digno, a subserviência é indigna. Ser subserviente é muito feio porque normalmente abre espaço a denunciantes, vaidosos, gente muito incapaz. Temos de tentar melhorar essa forma de existência. Não deve haver subserviência entre os homens, mas humildade. Espirito de serviço, coletivismo.

A Igreja tem uma palavra muito bonita que é partilha. Devemos partilhar os conhecimentos, a forma de estar, a nossa comodidade, tudo o que temos e os outros não têm, devemos partilhar sem ofender. Não devemos magoar quem tem menos que nós, nem mostrar que somos melhores ou que temos mais. Devemos tentar fazer isso, não é fácil ser assim. Não é fácil ser humilde no sentido correto da palavra, mas é bom ser.

 

AE – O que diz a palavra fé do Ruy de Carvalho?

RC – Sem ela não existia. Eu tenho muita fé e sou um ator que não se benze antes de entrar em cena. Há muitos colegas que se benzem, é a sua maneira de sentir.

Eu ofereço o meu trabalho, é uma forma de me benzer. Ofereço a Deus o meu trabalho, aos meus concidadãos, ofereço, não peço nada. Tenho de ter as qualidades de fazer ou não fazer bem as coisas que me são atribuídas.

 

AE – Outra palavra: palco.

RC – É uma maravilha. Chama-se bicho. Para nós é um bicho, entra em nós e nunca mais nos larga até ao fim da vida. Quando nos larga é porque nos mandaram embora para casa, mas sempre com vontade de viver nele.

 

AE – A palavra liberdade.

RC – A liberdade tem a ver com respeito, com humildade. Quem não é humilde não sabe viver em liberdade e não respeita os seus semelhantes. A liberdade é o máximo da democracia, outra palavra muito bonita. Tem de ser feita com muito respeito e com saber usar a liberdade e hoje, em Portugal, ainda há muita libertinagem que tem de acabar. Temos provas evidentes disso há pouco tem, há libertinagem e não liberdade.

A liberdade permite que haja diálogo e troca de impressões, mesmo que sejam exaltadas e quentes. Nada se deve fazer sem calor humano. A liberdade é uma palavra muito bonita e saber usá-la é ainda mais bonito.

 

AE – Uma última palavra: palmas.

RC – É a nossa recompensa. As palmas são o nosso grande prémio, o que o público nos dá. Na televisão e no cinema não temos, mas também dão. De outra forma.

Na rua dão-nos um beijo, «gostamos de o ver», «vi-o naquela telenovela». Muitos ainda não me viram no teatro que é mais elitista. A lotação é mais pequena que a televisão com milhões a poderem assistir. Chegamos mais depressa às pessoas.

Tenho momentos muito bonitos na minha vida, o calor humano à minha volta.

Fui há pouco tempo a Bustos, perto de Oliveira do Bairro, e tive muito carinho, fui tratado maravilhosamente. E eu senti-me bem. Um cidadão feliz.

 

AE – É dessa forma que gostaria de ser recordado? Um cidadão feliz?

RC – Se acharem que eu fui útil na minha passagem pela vida, é assim que eu gostava de ser recordado. Foi útil, serviu os seus semelhantes com amor.

 

AE – Obrigada Ruy de Carvalho e parabéns pelo Prémio Árvore da Vida.

RC – Obrigado eu. Sinto-me bem em ser uma árvore da vida.

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