Erradicar as causas de uma chaga

Paulo Rocha

Dar cidadania aos mais fracos, aos excluídos, a quem não tinha oportunidade nem possibilidade de fazer ouvir a sua voz é das conquistas maiores da civilização, nomeadamente a ocidental. Claro que há outras formas de subjugação, de domínio de uns sobre outros, pessoas ou grupos, de exercício do poder, muitas vezes escondida, falsa, dissimulada, fingida, talvez com consequências mais gravosas… Mas há um passo dado na salvaguarda da dignidade de vida de todas as pessoas: os crimes são cada vez mais denunciados, sobretudo os que são cometidos contra quem nunca conseguia exercer o direito de acusar os criminosos.

Estarão entre estes os crimes de abuso de menores, as várias formas de abuso que a história infelizmente conhece, de exercício de poder, de opressão, escravatura e mesmo de domínio sobre toda a pessoa, de que o abuso sexual é expressão.

O conhecimento de atos criminosos praticados por quem é líder, nomeadamente líder moral, emerge na opinião pública com gravidade acentuada. E justamente! De facto, não é possível pedir confiança, verdade e transparência a um guia, seja espiritual ou profissional, que tem no seu percurso a prática de atos severamente condenáveis.

O estado da questão sobre abusos sexuais por responsáveis da Igreja Católica, que marca de forma muito sombria a sua história no início do terceiro milénio, não podia ter provocado outra reação: tolerância zero, julgamento dos criminosos, contrição e reparação, no que seja possível, diante das vítimas e das suas famílias. E contam-se já numerosas as ocasiões em que tal aconteceu, nomeadamente por iniciativa do Papa Francisco e do seu antecessor, o Papa Emérito Bento XVI.

Está tudo feito? Claro que não! Não só a partir do governo da Santa Sé como – e sobretudo, diria – no que diz respeito às várias regiões do mundo, às diferentes Igrejas locais. Entre todos, para além da denúncia, do julgamento e da reparação do mal cometido, é sobretudo necessário agir na “erradicação das causas”. Vai nesse sentido a Carta ao Povo de Deus do Papa Francisco, divulgada no dia 20 de agosto último, e várias vozes que a subscrevem apoiam, como foi o caso da Conferência Episcopal Portuguesa, em mensagem dirigida ao Papa no dia 3 de setembro.

A prevenção de uma chaga exige ação rápida e alargada! Para erradicar as causas de abuso de menores é necessário, mais do que quadros legais, uma ação concertada de todas as pessoas e instituições, de toda a sociedade, agindo de forma determinada a montante de possíveis crimes, fazendo desaparecer ambientes que se podem tornar propícios a que aconteçam tais abusos e sobretudo estar próximo, em comunidade, de situações que podem conduzir a esse delito. No que diz respeito à Igreja Católica, interessa questionar se não é necessário repensar práticas habituais do seu quotidiano para erradicar tal chaga e encontrar outra configuração para encontros, reuniões e acompanhamentos que podem desaguar na prática de tais crimes. De facto, o âmbito privado para relacionamentos pastorais é de todo dispensável! Sobretudo porque é em comunidade que se descobre, prepara, realiza e celebra a experiência crente católica. Em todas as idades.

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