Homilia do bispo do Algarve na celebração da Paixão do Senhor

A Cruz – a maior prova de amor

Na tarde deste dia, Sexta-feira Santa, celebramos, com toda a Igreja, a Paixão do Senhor.

A nossa Assembleia, nesta tarde, alarga-se ao nosso país e ao mundo, através da transmissão da Radio Renascença, permitindo-nos, deste modo, acolher nesta nossa celebração quantos, nos mais diversos lugares e em diferentes situações, podem estar em comunhão connosco. Saudando cada um de vós, que aqui vos encontrais, quero no meu e no vosso nome, saudar e acolher a todos, dirigindo uma palavra de particular afeto, a quantos vivem, hoje, de modo muito real, a paixão de Jesus:

– os que se encontram doentes, em hospitais ou nas suas casas, privados ou fragilizados na saúde;

– os que se encontram em estabelecimentos prisionais, privados de liberdade;

– os que atravessam situações de sofrimento com diversas origens – doenças, acidentes, violência doméstica, ruturas familiares, mortes inocentes, vítimas da ganância dos bens e do lucro ilícito, vítimas de fundamentalismos religiosos, ideológicos, de lutas políticas, desprezo e atentados à vida humana nos seus diversos estádios – sofrimento que aumenta o peso da própria cruz.

Não esquecemos, igualmente, quantos, encontrando-se em viagem, este é o único modo, possivelmente para muitos, de celebrar a Paixão do Senhor. A todos incluímos nesta nossa Assembleia e temos presentes na nossa oração.

A celebração da Paixão do Senhor é constituída pela proclamação da Palavra, pela Adoração da Cruz e pela Comunhão eucarística. Inclui ainda a Oração universal que assume, hoje, uma forma solene e ampla. Exprime a oração da Igreja, consciente de que a salvação de Cristo é oferecida a todos, sem exceção.

  1. A Palavra de Deus proclamada, diz-nos que em Cristo se realiza, o que antes havia sido anunciado como figura e mistério no servo sofredor. Cristo é o servo que assume os pecados da humanidade:

– é o cordeiro verdadeiro que substitui o cordeiro figurado (1ª leit.: Isaías);

– é o rei que veio para servir e dar a vida (Evangelho de S. João);

– é o único Sacerdote e Mediador entre Deus e a humanidade (2ª leit.: Hebreus)

Cristo, através de um único, definitivo e eterno sacrifício realiza o que a imolação do cordeiro pascal anunciava. Pelo mistério pascal da sua paixão, morte, ressurreição e ascensão aos céus consuma a obra da redenção dos homens e da glorificação de Deus, prefigurada ao longo da história do povo da Antiga Aliança.

  1. Na solene Adoração da Cruz, somos convidados a dirigir o nosso olhar de fé e de veneração para a Cruz gloriosa de Cristo:

– nela reside a sabedoria e a glória do Pai;

– ela testemunha-nos que não há maior prova de amor do que dar a vida pelos amigos (Jo 15,13);

– ela ensina-nos que o amor é mais forte do que a morte.

  1. A Igreja, ao distribuir a Eucaristia neste dia, ainda que não a celebre, não quer privar-nos de, ao comungarmos o Corpo de Cristo, podermos contemplar mais profundamente o mistério da sua entrega por nós, que se fez nosso alimento de Vida eterna, mistério de fé e de amor constantemente atualizado e oferecido. A Eucaristia é o memorial de todo o mistério pascal: paixão, morte, descida à mansão dos mortos, ressurreição e ascensão ao céu, e a Cruz é a manifestação do ato de amor infinito, com o qual o Filho de Deus salvou o homem e o mundo do pecado e da morte.
  2. É por esta razão que o sinal da Cruz é o gesto fundamental da oração do cristão. Traçar sobre si mesmo o sinal da Cruz é pronunciar um sim visível e público a quem morreu por nós e ressuscitou, ao Deus que na humildade e debilidade de seu amor é o Omnipotente, mais forte que todo poder e a inteligência do mundo. O sinal da Cruz não deve, por isso, ser um gesto rotineiro, mas o pronunciamento de um «sim» ao amor de Cristo que, crucificado na cruz, morreu por nós.

Ao venerarmos e contemplarmos, neste dia, a Cruz de Cristo, queremos acolher o convite e o testemunho contemplativo do evangelista João: hão de olhar para Aquele que trespassaram (Jo 19,37). Um olhar de fé e de amor para Cristo crucificado que, ao morrer na Cruz, nos revelou plenamente o amor de Deus por nós.

Olhemos confiantes para o lado aberto de Cristo na cruz, do qual brotam sangue e água (Jo 19,34)! Os Padres da Igreja consideraram estes elementos como símbolos dos sacramentos do Batismo e da Eucaristia. Com a água do Batismo, graças à ação do Espírito Santo, abre-se para nós a intimidade do amor trinitário.

O sangue, símbolo do amor do Bom Pastor, derrama-se sobre nós, especialmente no mistério eucarístico: “A Eucaristia atrai-nos para o ato oblativo de Jesus… somos envolvidos na dinâmica da sua doação” (Enc. Deus caritas est, 13).

Contemplemos Cristo trespassado na Cruz! Ele é a revelação mais perturbadora do amor de Deus. No Coração trespassado de Cristo na Cruz, encontramos a expressão mais comovedora deste mistério de amor e que Paulo exprimiu de modo tão pessoal e tão expressivo ao concluir: a vida que agora vivo, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim (Gal 2, 20).

Perante a certeza e a grandeza de tal amor, deve surgir espontaneamente de cada um de nós a pergunta: que devo fazer para corresponder a tal amor? Que resposta devo dar, que seja digna do amor de Deus por mim?

A resposta que o Senhor deseja ardentemente de nós é, antes de tudo, que acolhamos o seu amor e nos deixemos atrair por Ele. E Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim (Jo 12,32). Mas não basta aceitar e acolher o seu amor. Na Cruz é Ele próprio que pede o nosso amor: Ele tem sede do amor de cada um de nós. É preciso também corresponder a este amor e comprometer-se a transmiti-lo aos outros: Cristo atrai-me para si, para se unir a mim e para que eu aprenda a amar os irmãos com o seu mesmo amor. O apóstolo S. João ajuda-nos e indica-nos este modo de proceder: Nisto consiste o amor: Ele deu a vida por nós. Também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos (1 Jo 3,16).

Contemplar Aquele que trespassaram estimular-nos-á a abrir o coração aos outros, reconhecendo as feridas provocadas à dignidade do ser humano; impelir-nos-á a combater qualquer forma de desprezo da vida e de exploração da pessoa; a aliviar os dramas da solidão e do abandono de tantas pessoas; a partilhar o que somos e o que temos com os atingidos por tantas formas de sofrimento e de solidão.

  1. Meus irmãos, possa esta celebração da Paixão do Senhor constituir, para todos nós, uma experiência gratificante do amor de Deus, que nos foi oferecido em Cristo e, por sua vez, um apelo a partilhar este amor com o próximo, sobretudo com quem mais sofre e é necessitado. Só assim poderemos participar plenamente da alegria Páscoa de Cristo Ressuscitado (cf Bento XVI, Quaresma 2007).

E se alguma vez, nos sentirmos tentados a desviar o nosso olhar de fé da cruz de Jesus, devido ao peso da nossa cruz, ou da cruz daqueles dos quais somos Cireneus, apoiemo-nos na Virgem Maria, Senhora da Piedade, que nos foi entregue por Mãe no Calvário, e supliquemos-lhe que nos assista com a sua amorosa proteção no caminho da vida, particularmente quando passarmos pela noite da dor, de modo a conseguirmos permanecer como Ela firmes e de pé, junto à cruz (Bento XVI JMJ Madrid).

Maria ensinar-nos-á que a cruz de Jesus é a maior prova do seu amor por nós. Com ela tornar-se-á, certamente, mais fácil, compreender o sentido fecundo e redentor do sofrimento humano e viver, com maior fidelidade, a lição de amor gratuito, generoso e total de Cristo crucificado.

D. Manuel Quintas, bispo do Algarve

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