Homilia do cardeal-patriarca na Missa Vespertina da Ceia do Senhor

« Compreendeis o que vos fiz?»

Acabámos de escutar o que demoraremos a entender. Parecendo simples, ultrapassa completamente a nossa previsão – como ultrapassou a dos discípulos na Última Ceia.
Jesus levanta-se da mesa. Tira o manto e toma uma toalha, que põe à cintura… Já isto era surpreendente, sendo gesto de servo e servo humílimo. Mais ainda o que fez a seguir, deitando água numa bacia e começando a lavar os pés aos discípulos, enxugando-os coma toalha…
Foi normal a recusa de Pedro, ao chegar a sua vez: – Como podia aceitar tal inversão de papéis e que o seu Senhor se fizesse seu servo? Mais decisiva foi a resposta de Jesus: «Se não tos lavar, não terás parte comigo!»Ainda hoje será difícil de entender a atitude de Jesus, mesmo que as clivagens sociais não sejam tão profundas, legalmente falando. Ainda assim estranharíamos que o principal do grupo nos aparecesse de súbito como o último de todos e no último dos serviços.
No entanto, dois milénios cristãos já nos deviam ter convencido. Todos quantos viveram no Espírito de Cristo repetiram-lhe o gesto daquela Ceia que agora celebramos. Não só o repetiram, mas assim mesmo demonstraram ser autenticamente seus discípulos. Quando Saulo se converteu em Paulo, considerando como lixo tudo quanto fora antes, para se sujeitar a tantos trabalhos para servir a muitos com o anúncio evangélico. Quando Francisco de Assis deixou a vida abastada que levava, para servir a “Senhora Pobreza” e se tornar no menor dos irmãos. Quando, mais tarde, João de Deus albergou no seu hospital de Granada os pobres doentes que já albergara no seu coração. Quando, bem perto de nós, Teresa de Calcutá se dedicou aos últimos dos últimos, como eram os moribundos daquela cidade imensa…
Sim, já devíamos estar inteiramente convencidos. Coisa, aliás, só possível se, como eles, nos deixarmos convencer inteiramente por Cristo – pela sua verdade, que é outro nome da sua caridade.

Convenhamos que não é fácil. Desde que a humanidade se conhece,  sempre tendeu a olhar Deus como se olha a si própria. Em geral, projeta a grandeza que não tem, mas gostaria de ter. Figura-se em grande, em mil e uma representações que no essencial andam em torno do mesmo. Das ruínas de antigas civilizações à moderna cinematografia, repetem-se figuras fantásticas de poder e domínio.
Esta persistência tolda-nos o horizonte e deixa-nos pouco disponíveis para a revelação divina propriamente dita. A história bíblica – de Abraão a Moisés, de Moisés aos antigos reis e destes ao tempo de Jesus – apresenta-nos uma tensão contínua entre a diferença absoluta de Deus e a insistência do povo em apropriá-Lo ao seu desejo e figura.
Não admira que alguns considerassem blasfema a afirmação de Jesus como “Filho de Deus”. – Como podia ser tão simples e tão próximo Aquele em que projetavam os seus próprios fumos de grandeza?
Não admira que Pedro, e os outros certamente, não admitissem que Aquele que já entreviam divino se apresentasse assim, não só como um deles, mas como servo de todos…
Foi preciso que Jesus insistisse com Pedro: «Se não te lavar os pés, não terás parte comigo.» Ter parte é participar, partilhar a vida e o futuro de alguém a quem se quer. Assim queriam Pedro e os outros, saídos das suas terras para seguirem a Cristo. Mas foi-lhes preciso aprender o que era realmente a vida de Cristo, como modo tão imprevisto de ser Deus Connosco.Esse modo concretiza-se em humildade e serviço. Já uma inesquecível página bíblica dissera que, quando o profeta Elias reencontrou a Deus no monte Horeb, tal sucedeu em grande contraste com antigas teofanias. Nem na ventania impetuosa que fendia as montanhas e quebrava os rochedos, nem no tremor de terra, nem num grande fogo. Foi «no murmúrio de uma brisa suave» (1 Rs 19, 12).
É também assim que Deus está na nossa vida, humilde e quase impercetível no seu poder criador, com que agora mesmo nos faz estar aqui. Corremos o risco de não dar por isso, de não darmos por Ele, de não agradecer o seu amor – e podemos até dizer o seu serviço. Em Cristo é assim mesmo que Se apresenta: «Eu estou no meio de vós como aquele que serve» (Lc 22, 27).

E com uma conclusão lógica e obrigatória: Se Deus é serviço, com Ele aprendemos o que toda a nossa vida há de ser, como serviço também. A única maneira de Lhe agradecer a vida que nos concede é reparti-la com os outros. Por isso continua Cristo: «Compreendeis o que vos fiz? […] Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também.»
Viver eucaristicamente é agradecer a Deus a vida que nos concede e partilhá-la com os outros. Como Cristo nos ensinou a viver, do Pai para os outros e com todos para o Pai, no movimento do Espírito.
Do modo mais concreto e simples, no dia-a-dia da celebração e da caridade. Neste sentido, são muito claras as palavras do Papa Francisco, ainda há pouco (audiência geral de 7 de março): «O significado desta Oração [Eucarística] é que toda a assembleia dos fiéis se una com Cristo para magnificar as grandes obras de Deus e para oferecer o sacrifício. E para nos unir devemos compreender. Por isso, a Igreja quis celebrar a Missa na língua que as pessoas entendem, a fim de que cada um possa unir-se a este louvor e a esta grande oração juntamente com o sacerdote.» Para sublinhar depois as três atitudes decorrentes: «primeira, aprender a “dar graças, sempre e em todos os lugares”, e não só em determinadas ocasiões, quando tudo corre bem; segunda, fazer da nossa vida um dom de amor, livre e gratuito; terceira, fazer comunhão concreta, na Igreja e com todos.»
Concluamos serem verdadeiramente assim a Eucaristia de Cristo, o sacerdócio comum e o ministerial que a celebram, o mandato recebido e a cumprir.
Como está anunciado, dedicaremos o próximo ano pastoral à receção ativa do número 47 da Constituição Sinodal de Lisboa, para melhor compreendermos e vivermos a liturgia como lugar de encontro com Deus e como comunidade celebrante. Insistiremos numa «catequese mistagógica que introduza toda a comunidade na vivência dos tempos litúrgicos e na compreensão dos seus símbolos e ritos. […] As comunidades cristãs são chamadas a recuperar o sentido profundo do Dia do Senhor, pela participação na Eucaristia e pela escuta da Palavra e encontrando formas de viver a fraternidade e a alegria cristãs.»
Começando agora o Tríduo Pascal, respondamos com mais certeza à premente pergunta do Senhor: «- Compreendeis o que vos fiz?» Para renovar em cada Eucaristia a disposição mais forte de agradecer e servir. Sigamo-Lo agora no rito, para O imitarmos continuamente na vida.
Sé de Lisboa, 29 de março de 2018

D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa

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