Missa crismal: Homilia do bispo do Porto

Porque há, urgentemente, uma boa nova a anunciar, de pobres para pobres!

 «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova os pobres…». Caríssimos irmãos e amigos, esta autoapresentação de Jesus na sinagoga de Nazaré contém em poucas palavras o essencial da sua vida e missão, como continua no seu corpo eclesial inteiro e também entre nós, na Igreja diocesana do Porto.

– Saúdo-vos a todos e cada um, com o envolvimento pessoal e fraterno que a nossa convivência já proporciona e a vida eclesial sempre oferece. Caríssimos irmãos Bispos, caríssimos presbíteros do clero secular e regular, caríssimos diáconos, consagrados, seminaristas. Caríssimos – e verdadeiramente o sois, todos e cada um! – fiéis leigos, que connosco repartis a dignidade batismal e a vocação à santidade, dignidade única e vocação comum de todo o discípulo de Cristo!

Aquele trecho de Isaías, que Jesus tomou para se apresentar na terra em que fora criado, traz-nos também o esclarecimento fundamental sobre de Quem partimos, o que realmente somos, a quem nos dirigimos e o que oferecemos.

«O Espírito do Senhor está sobre mim»: Assim começa o trecho e assim começa e recomeça tudo, a partir do Espírito de Deus, por iniciativa e ação fundamental de Deus Espírito. Esta verdade é indispensável de reter, para nos considerarmos, do presente para o futuro, em tudo o que ao mundo respeite e em tudo o que na Igreja se faça, a partir desse lugar primeiríssimo onde o espírito divino toca o humano. 

Abrindo a Bíblia Sagrada, lemos imediatamente o seguinte: «No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas» (Gn 1, 1-2). Sabemos como esta passagem, aparentemente simples e quase linear, visa reduzir à iniciativa divina a criação inteira, em contraste com as cosmogonias antigas, que se repartiam por pretensas divindades contrastantes.

Sabemos também que o politeísmo antigo não foi, nem é, rápido de superar, pois mais facilmente nos dispersamos por referências várias do que nos rendemos a um só Criador, que imediatamente requererá adoração única e conversão sem despiste. De modo mais ou menos primitivo, mais ou menos sofisticado, o politeísmo reaparecerá sempre que a conversão tardar. Sobrevive até quando nos consideramos a nós mesmos como criadores e decisores principais do que fazemos ou pretendemos fazer, na vida pessoal, ou eclesial que seja.

Mas não é, nem pode ser assim. Bem pelo contrário, é sempre em Deus, na força do seu Espírito, que tudo realmente começa e tudo finalmente se retoma. Porque, se aqueles versículos do Génesis se referem à criação, teologicamente considerada, outro versículo idêntico se refere à nova criação, soteriologicamente apresentada. Assim na resposta a Maria: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).

Esta essencialíssima verdade bíblica é especialmente oportuna agora, para a vida eclesial que levamos e projetamos, certamente inspirados pelas palavras e gestos que o tão providencial Papa Francisco nos tem oferecido. O seu imediato apelo à oração da Igreja para o desempenho da missão que lhe foi atribuída, a insistência com que nos lembra a responsabilidade que temos em relação à criação inteira, obra divina confiada a todos e a todos destinada, tudo nos inculca uma consciência deveras crente, face à Igreja e ao mundo.

A consciência certa de que tudo o que se faça ou refaça só legitimamente acontecerá a partir de Deus e do seu Espírito, manifestava-a Jesus naquele dia, aplicando a si mesmo o antigo versículo de Isaías. Por isso mesmo era o “Ungido” – o “Messias”, que em grego se diz “Cristo”. Semelhante consciência que mantivermos nós, viva e ativa, caríssimos cristãos e especialmente os que participamos do sacerdócio ministerial, é indispensável para sermos autênticos e inadiável para sermos criativos – evangelicamente criativos, eficazes e finalmente prestáveis.

Partamos então de Deus, da sua constante vontade criadora e recriadora de tudo e de todos em Cristo, na força do Espírito. E assim mesmos seremos “cristãos”, como o mundo espera que sejamos e tanto se alegra quando o somos. Disto tivemos também a exemplificação nos dias que vivemos em torno da eleição do Papa Francisco, como já a tivéramos no modo como o Papa Bento apresentou e realizou a sua renúncia.

A maneira surpreendente com que ambos fizeram o que sentiram incumbir-lhes, em clima de oração e discernimento espiritual, tudo surpreendeu o mundo, mas porque diametralmente contrastava com o espírito habitual do mesmo mundo. E tanto assim foi, que mesmo comentadores não confessionais o acentuaram e continuam a acentuar.

Como disse o Papa Francisco, dirijamo-nos aos pobres, numa Igreja pobre e para os pobres. Sucessor de Pedro, repetiu a seu modo o que o apóstolo respondeu ao mendigo de Jerusalém: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda!» (Act 3, 6).

Anunciar a boa nova aos pobres, caríssimos irmãos, exige que sejamos pobres, porque assim mesmo começou Pedro: «Não tenho ouro nem prata…». Trata-se duma atitude evangélica fundamental, de desprendimento do coração mesmo daquilo de que eventualmente possamos dispor, ou tenhamos inclusivamente o dever de administrar para benefício de todos. Porque não “tinha” ouro nem prata, Pedro ofereceu a Cristo. Ai de nós, quando nos distraímos com muitas coisas, mesmo de teres e saberes, e adiamos para nós e para os outros o essencial que só em Cristo se oferece…

  Porque a boa nova é essa mesma, de em Cristo encontrarmos a Páscoa universal, ou seja, a possibilidade de “passarmos” já àquele Reino de mútua doação e partilha em que Deus unitrino tudo reconhecerá como seu. Em cada uma das comunidades que sacerdotalmente servimos, com a indispensável colaboração de diáconos, consagrados e fiéis leigos, apenas disso se trata, mas indispensavelmente há de ser assim, por palavras e obras.

À expectativa do mundo, tão insistente hoje em dia, devolveremos a resposta que Jesus deu à de João Baptista: «Ide contar a João o que vedes e ouvis: Os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a boa nova é anunciada aos pobres» (Mt 11, 4-5).

Nem sempre tais coisas acontecem fisicamente, mas todos sabemos que são sinais de uma cura maior, essa sim definitiva e indispensável: que se passe a ver tudo a outra luz, a ouvir com outro entendimento e a andar doutra maneira; que se ultrapassem todas as “lepras” que impossibilitam a convivência e que sobretudo se reviva duma vida maior e consistente.

Deixai-me referir, a propósito, a experiência magnífica das Jornadas Vicariais da Fé, que vão decorrendo por toda a diocese. Um dos seus momentos altos e decerto marcantes para os que nelas têm participado – e contam-se já por vários milhares – é a tarde reservada aos testemunhos de fé, vivida por tantos fiéis e em diversos contextos. E o que sobressai e convence é o realismo cristão com que aqueles sinais do Reino continuam hoje nas famílias, nas comunidades, nas escolas, nas empresas e em tantas circunstâncias concretas.   E, se a “crise” é para refazermos a vida, tais obras da fé já demonstram como isso há de ser. 

Numa sociedade como a que integramos hoje, todo o programa de Cristo ganha irrecusável urgência. E para nós sacerdotes, que somos em cada comunidade sinais vivos de Cristo sacerdote e pastor, redobra-se a exigência espiritual nesse sentido.

Humanamente somos poucos, muito poucos, para tanto trabalho. Por isso mesmo, precisamos de ensaiar e incrementar novas formas de cooperação pastoral, entre nós e com os outros membros do Povo de Deus. Mas essencialmente porque a nova evangelização tem um sujeito coletivo – as comunidades cristãs, trabalhando “em rede” – aquela rede que Jesus sempre nos manda relançar.

No entanto, mesmo se fossemos muitos mais, ficaríamos sempre aquém duma tarefa que é fundamentalmente divina e só em comunhão apostólica se pode exercer. Esta consciência nos levará, caríssimos sacerdotes, a duas inevitáveis consequências: teremos de reforçar a nossa vida espiritual e teremos de nos apoiar sempre mais uns aos outros.

Como sabemos, a “oração sacerdotal” do capítulo 17 do Evangelho de São João vincula a comunhão de todos à comunhão basilar dos discípulos, como Jesus pede ao Pai: «Não rogo só por eles, mas também por aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em Ti; para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste” (Jo 17, 20-21). O mundo acreditará pelo amor mútuo que em nós lhe evidencie o Deus Amor.

É também neste sentido que o Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros nos dá indicações como as seguintes, ligando a vida sacerdotal de cada presbítero à comunhão sacerdotal de todos: «O próprio presbítero é o primeiro e principal responsável da sua formação permanente.

De facto, sobre cada sacerdote incumbe o dever de ser fiel ao dom de Deus e ao dinamismo de conversão quotidiana que provém do mesmo dom. Tal dever deriva do facto de que ninguém pode substituir cada um dos presbíteros no “vigiar sobre si mesmo” (cf 1 Tim 4, 16)» (nº 87).

Mas para continuar mais adiante: «Em todos os aspetos da existência sacerdotal virão ao de cima os especiais vínculos de caridade apostólica, de ministério e de fraternidade, sobre os quais se funda a ajuda recíproca que os presbíteros darão uns aos outros. É desejável que cresça e se desenvolva a cooperação de todos os presbíteros no cuidado da sua vida espiritual e humana e bem assim no serviço ministerial» (nº 88).

E se tal indicava o Diretório há quase vinte anos, na esteira aliás do Vaticano II (cf. PO, 8), as condições atuais da nossa vida e diocese, caríssimos presbíteros, tornam tudo isto mais indispensável e premente. Recolhamos também nesse ponto a exortação do Papa Francisco na Missa de inauguração do pontificado: cuidemos de tudo, cuidemos de todos, cuidemos de nós, quais guardiões uns dos outros.

Sejamos mutuamente pastores de pastores, para todos sermos pastores do povo que nos é confiado, como este mesmo povo há de ser de algum modo pastor da criação inteira!

E façamo-lo humildemente, como quem acolhe e partilha o dom do próprio Deus. Porque há, urgentemente, uma boa nova a anunciar, de pobres para pobres, assim cumprindo a primeira bem-aventurança (cf. Mt 5, 3).          

+ Manuel Clemente

Sé do Porto, 28 de março de 2013

 

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