O que a razão não conhece

Muito antes de se declarar oficialmente a guerra do Iraque foi lançado um peditório mundial em favor das vítimas dos efeitos colaterais. Assistimos, assim, a uma discreta distribuição de tarefas, algumas de teor mais técnico (a reconstrução de pontes, estradas e aeroportos) outras mais directamente humanitárias, como a assistência a refugiados, sem esquecer a requisição de um pequeno exército de psicólogos para reconfortar espiritualmente as amputações decorrentes dos ataques e as perdas de parentes e amigos. Tudo isto pareceria uma ironia se não fosse trágico. Enquadra-se na lógica do gesto premeditado e do cálculo preciso sobre os estragos provocados. Estamos dentro da lógica dura de que mais vale remediar que prevenir, uma vez que a guerra se declara para prevenir – atacar – e não para defender. Curioso e complexo é o coração humano que tinge a razão e seus silogismos da cor que melhor lhe convém. Este percurso tenebroso aplica-se a muito mais terrenos do que aquilo que parece. O envolvimento emocional em qualquer causa como que obnubila a clarividência racional do que quer que seja. Quantas vezes a defesa apaixonada de teses científicas, técnicas, filosóficas ou religiosas serpenteia pelos contornos das experiências pessoais, das cumplicidades secretas, dos afectos implícitos, bem distantes dessa frieza intelectual e serena que tão vigorosamente se proclama. Complexo ser é o homem que, não apenas se não conhece em plenitude, como não dá a conhecer o pouco que de si mesmo sabe. Somos uma espécie de fantasmas que usamos vestes como capa de frio ou pudor mas, em última análise, escondidos em sobreposições de camadas e camuflados no nosso ego pessoal ou colectivo. Descrença total na humanidade? Nem por isso. Mas só conhece o ser humano quem percebe as capas e sub capas que maquilham as grandes encenações dos pequenos e grandes acontecimentos do mundo. Por muito que expliquem os analistas, estrategas, políticos, pacifistas, belicistas e moralistas – como se vê não falta gente a sentenciar – as últimas razões da invasão flutuam no olhar baço e indefinido dos que, à porta fechada, escondem o desenho e o circuito da guerra e da paz. Em plena democracia, em total inundação informativa, pouco se sabe, afinal. Parece que as últimas razões do que quer que seja estão ocultas, envoltas em neblinas por dissipar. Esperemos que não estejam perdidas em qualquer cardume de enguias as razões últimas de viver.

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