Pontes e portas, limites e limiares

José Luís Gonçalves

No pequeníssimo ensaio «Ponte e Porta» de 1909, Georg Simmel fornecia uma metáfora fecunda para pensar o binómio associação/dissociação. A partir da ponte como símbolo da associação-ligação e da porta como passagem para a dissociação-separação, refletia sobre o que permite aos “homens, construtores de caminhos”, passar, reunir e ligar margens ou o que, inversamente, promove a separação, a interrupção e a descontinuidade de realidades e relações. Acolhendo este contributo, Walter Benjamin, em «Passagens» (1927-1940), foi mais longe no pensamento transgressivo ao propor uma distinção útil entre as noções de limite e limiar. Diferenciando, no alemão, o limite enquanto fronteira (Grenze) do limiar enquanto soleira ou umbral (Schwelle), identifica o limite com o campo jurídico e indexa esta noção à ideia de transgressão, ao passo que entende o limiar como espaços-tempos de passagens e transições. Os limiares correspondem, pois, a movimentos de espaço-tempo indefinidos enquanto as fronteiras demarcam zonas-limite cuja transgressão deve ser assinalada.

Serve esta introdução para pensar o fluxo estonteante de assuntos ligados à bioética com que o espaço público tem sido inundado ultimamente: eutanásia, distanásia, “barrigas de aluguer”, questões de (multi)género ou outros assuntos de natureza semelhante. Marcar a agenda política com estas questões visa, em última análise, transpor os limites jurídicos estabelecidos e forçar a travessia para limiares éticos desconhecidos. Acontece que os limiares são zonas de extensão indefinida, representam espaços intermédios e indeterminados, não raras vezes misturando e confundidas/ confundindo categorias, enquanto que os limites estabelecem e definem o autorizado e o interdito, distinguindo os meios dos fins.

Walter Benjamin chamava a atenção para o facto de, nos estilos de vida modernos, as transições dos limites para os limiares se terem tornado particamente irreconhecíveis. Hoje, pode afirmar-se que a supressão/compressão/aceleração do tempo e do espaço (A. Giddens) retirou às pessoas a possibilidade de fazerem experiências liminares, de percecionarem ritmos e tempos diferenciados de transição. O encurtamento do tempo, que só o é quando envolto em novidade, aboliu os rituais (limiares) de passagem que separam e transformam, ritos que permitem deixar um território estável e adentrar conscientemente por outro espaço…

Os propósitos políticos de quem quer pautar a agenda mediática com aqueles temas é clara: transgredir os limites jurídicos propondo limiares éticos alternativos. A pressa com que se faz constitui o seu método: encurtar tempos e rituais de transição, por via legislativa, diminuindo com isso drasticamente a nossa perceção dos novos e desconhecidos territórios éticos que passamos a pisar, atirando todo um povo para o vazio moral. Acontece que transgredir limites e testar limiares exige tempo, escuta e debate público. Por serem matérias de vital interesse coletivo, atravessar limiares que separam e descontinuam caminhos de uma sabedoria milenarmente construída nestas matérias constitui um risco que deve ser assumido por todos. Importa, pois, estabelecer pontes, ligando margens, mais que promover separações e descontinuidades artificiais por motivos ideológicos. Não queiram que passemos apressadamente certos umbrais cujas portas se podem fechar irremediavelmente atrás de nós…

 

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