Porque são algumas crianças especiais?

Elas estão entre as mais desprotegidas e, por isso, da sua inclusão – verdadeira inclusão social – nos devemos todos ocupar O título, que serviu de encomenda e encabeça o texto, suscita logo a sua aparente contradição interna: mas não são todas as crianças especiais? Importa, pois, que se esclareça que as crianças especiais que aqui nos ocupam são aquelas que, por um conjunto de características mentais próprias, concorrem, face aos seus pares, com limitações na sua afirmação pessoal e social. Deficientes mentais, dirão uns. Com deficiência mental, dirão outros. Especiais, diremos nós. Porque são, pois, algumas crianças especiais? Antes de mais, o porquê do facto. Porque, por um acaso da natureza, assim resultaram. Porque, por uma falha médica ou de enfermagem, assim ficaram. Porque, por um comportamento negligente dos seus pais, assim nasceram. Porque um acidente assim as transformou. Porque uma institucionalização prolongada e absolutamente dispensável antes da adopção, limitou o seu desenvolvimento. Portanto, são especiais, mas não porque queiram. Depois, o porquê do estado. São especiais, porque, não obstante a notícia chegada durante a gravidez que o menino assim seria quando nascesse, a gravidez continuou e isso fez delas, logo, um ser especial. (Alguns clínicos – raros seguramente – quando anunciam esta situação aos pais ainda usam a expressão “poderá ser um vegetal”; depois somos nós, pais, obrigados a recordar-lhes que, salvo melhor opinião, é, no mínimo, do reino animal de que estamos a falar!) São especiais porque não obstante a informação durante o processo de adopção do seu fraco potencial ou da sua debilidade mental, foi dito “sim, vai ser a nossa filha”. E isso faz dela logo um ser especial. Especiais, porque com menos, muito menos do que as outras; e isso faz delas, especiais! Especiais porque nos exigem em permanência, 24 horas sobre 24 horas, e em permanência nos projectam para um futuro precocemente antecipado na preocupação do “que vai ser dele/dela”, “até onde pode chegar” e “como preparar o seu ficar antes de nós partirmos”. Especiais porque não se conhece uma rede formal ou informal de baby sitters pronta para o serviço a estas crianças especiais, o que desde logo leva a uma reformatação muito especial da vida das famílias. E há casos que poderiam resultar em riscos que não se podem pedir nem à melhor generosidade dos melhores dos amigos. A rede de apoios é diminuta, pois, o que faz ver quanto são especiais. Especiais porque o descontrole do esfíncter pode encurtar para os 5 minutos iniciais a impecavelmente projectada e planificada tarde inteira na praia ou a ida ao cinema programada, falada e sonhada durante a semana inteira. Especiais porque elas têm, de uma maneira geral, dos sorrisos mais especiais que se conhecem e são um poço de afectos sem fundo. Mesmo quando o beijo e o aperto de braços tão apertado, quase obrigam ao “ai não me apertes tanto” (que só não sai porque lhe faria mal) e mesmo quando ocorrem com a mesma força da violência da crise com que nos agrediram impulsivamente ainda nem há uma hora atrás… Especiais porque são eles e elas e não outros. Finalmente, o porquê que concorre para a nossa obrigação de acção. Especiais porque são nossas e isso obriga-nos a um redobrar de esforços. E quando se diz nossas não se diz “de nós, pais delas”. Diz-se de nós todos! Porque elas estão entre as mais desprotegidas e, por isso, da sua inclusão – verdadeira inclusão social – nos devemos todos ocupar. Uma inclusão que não o pode ser a todo o custo; inclusão que para muitas delas passa por instituições de ensino especial onde preparam e constroem os seus projectos de felicidade. Mas de inclusão falamos, também, quando nos espaços ditos normais da sociabilização sobre todos nós recai essa missão: no jardim público, no emprego, no acesso à oportunidade, na integração que delas fazemos no círculo das outras crianças, no não olhar nem classificar como “coitado”, na explicação eloquente que se dá à criança que, no supermercado, com olhar atónito e boquiaberta olha para aquele ser estranho. De inclusão falamos quando no espaço da comunidade eclesial se fala do lugar delas. Quando não respondem do mesmo jeito, quando fazem uns ruídos estranhos enquanto os outros respondem unanimemente ao liturgicamente previsto, quando o seu crescimento na fé se processa de uma outra forma diferente dos catecismos adoptados, quando têm uma relação com o Bom Deus que nos ajuda a compreender o que Ele queria dizer com “os puros de coração”. Quando obrigam à resposta desconcertante ao pároco que, à imagem dos raros clínicos atrás apontados que se referiam àquele ser como vegetal, se interroga sobre a capacidade daquela criança em compreender o “transcendente mistério da eucaristia” ou da “exigência do compromisso eclesial” e por isso colocam em dúvida a possibilidade, respectivamente, de fazer a primeira comunhão ou a confirmação. Especiais porque basta pô-las um pouco com o senhor prior (mas deixando-as falar, dispensando a cartilha de perguntas previamente formatada), falando livremente sobre como Deus é importante para elas ou como ir à igreja é momento central da sua semana, ou de como cantar pode ser tão importante na sua vida, ou como segredam coisas ao Bom Deus, para que as dúvidas teológicas e pastorais no coração de zelo de um qualquer presbítero da Igreja se dissipem. Confessamos aqui, em breve apontamento, que Fé e Luz – movimento internacional com algumas comunidades em Portugal – tem sabido ser um espaço de particular síntese entre este espaço próprio que dá lugar e respeita as particularidades únicas destas crianças especiais e a sua inclusão na Igreja, lugar de todos, delas também. É que são filhas de Deus e, por isso, são especiais. Tão especiais quanto as outras é certo. Mas, por uma vez, há uns seres que nos obrigam a todos a sermos mais especiais. É isso que as torna tão especiais! Fernando e Eugénia Magalhães, pais de uma criança especial FOTO: Terra das Ideias.com

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