Maria Amélia Carvalheira – A pintura das imagens

No ano em que se comemora o Centenário de Maria Amélia Carvalheira pode afirmar-se que a sua obra ainda não é reconhecida pela grande maioria dos cristãos portugueses, por falta de divulgação. Conforme se pode constatar nos escaparates das livrarias e das casas de artigos religiosos, e nos respectivos mostruários de artigos, não é possível obter edições de postais ou de pagelas com reproduções das imagens realizadas pela escultora.

Esta lacuna, é tanto ou mais injusta quanto a qualidade da obra religiosa da artista portuguesa ultrapassa largamente a das imagens que são produzidas por autores estrangeiros sem gosto ou qualificação, mas que, sendo editados aos milhares, inundam o nosso mercado com produtos menores que pouco podem contribuir para elevar o nível cultural e religiosos dos fiéis. Maria Amélia Carvalheira dedicou a sua vida à arte sacra, uma expressão artística orientada para a transcendência e que, sendo pessoal, se faz comunitária; devemos entender e apreciar a arte da escultora como uma expressão de fé, na importante função de ser mediação para o culto. Se a arte contemporânea afirma a sua liberdade e autonomia em relação a finalidades e a funções, a arte que se propõe como mediação religiosa, como aquela a que a artista a quem prestamos homenagem se dedicou por vocação, obriga-se a referências formais e simbólicas que devem ser identificadoras de sentidos.

A arte de Carvalheira inseriu-se, com coerência, na tradição da arte cristã ao nível dos conteúdo teológicos e da representação iconográfica. No domínio da pintura das imagens, a artista actualizou os processos e os modelos tradicionais, mantendo-se fiel à simbologia das cores. Introduziu inovações cromáticas em iconografias de invocações marianas recentes, nomeadamente nas excelentes representações monocromáticas do Coração Imaculado de Maria e de Nossa Senhora de Fátima, e em algumas peças de excepção. Deve destacar-se, entre todas, uma imagem belíssima de S.João de Deus que, sendo tão original na forma como na policromia, foi justamente distinguida com um Prémio Manuel Pereira de Escultura, numa exposição de Artes Plásticas, em 1949.

Na obra de Carvalheira, a pintura das imagens restringiu-se à policromia das formas e dos volumes. No entanto, e como iremos ver, o estilo da policromia adoptado pela escultora e a opção estética que a informa, influenciaram a qualidade comunicativa das próprias imagens diferenciando-as no conjunto da vasta obra realizada. Uma constante na obra da artista é a humanidade das suas representações. A cor que reveste as figuras torna-as menos naturalistas e mais densas e pesadas do que as executadas na pedra, o que, por antinomia, parece acentuar a interioridade e a força do mistério que as habita. A densidade humana e espiritual das imagens representadas, torna mais explícito o sentido essencial da arte religiosa cristã, na sua referência ao mistério da encarnação. O processo criativo da escultora revela uma formação clássica inicial mais tarde influenciada por valores da estética modernista do seu Mestre, o escultor Barata Feio.

O cunho pessoal da discípula parece revelar-se precisamente nas suas terracotas e na respectiva policromia, em peças que fazendo coexistir uma certa ingenuidade popular com valores clássicos e eruditos, remetem para a tradição dos barristas portugueses. As formas simples e hieráticas das imagens de Carvalheira, aproximam-se do despojamento expressivo que sempre caracterizou a arte sacra portuguesa. Esta particularidade deve-se, também, à interioridade das expressões e à imobilidade dos volumes, o que é reforçado pela pintura na sua aparente pobreza através de uma cor sóbria, sem contrastes nem variações. Os tons quentes acentuavam a presença do barro cozido e o parentesco visual deste com a madeira, um material mais nobre com grandes tradições no imaginário religioso nacional.

Alguns exemplos de imagens de Maria Helena Carvalheira são decididamente mais próximos do gosto popular, como se pode ver nos presépios de maiores ou menores dimensões, nos quais o colorido é muito mais intenso e variado, e onde a expressão de ternura é mais explícita. As grandes e as pequenas imagens modeladas em barro e policromadas foram as mais procuradas pela comunidades, revelando-se mais adequadas à função de ser mediação para a oração das pessoas e das comunidades, do que as peças esculpidas na pedra, apesar da densidade espiritual destas não ser menor. A paleta utilizada pela artista resumiu-se à persistência dos ocres, dos vermelhos e dos castanhos, pontuados por alguns verdes e azuis, predominantemente escuros.

As patines comportam-se como uma velatura temporal das imagens, conferindo-lhes a distância que é própria dos ícones. Conclui-se que a opção da artista pela integração da cor na escultura correspondeu a uma opção estética e simbólica, visto o estilo da pintura intervir na expressão das próprias imagens, eliminando, através da cor e das patines sombrias, a proximidade das figuras com a representação naturalista e com um decorativismo redutor. Esta intencionalidade caracterizou a preciosa contribuição de Maria Amélia Carvalheira na actualização da imagem religiosa em Portugal. Uma contribuição que foi corajosa e que continua a ser relevante, por constituir uma contra-corrente de qualidade num contexto eclesial pouco informado e pouco exigente.

Tendo surgido em correspondência ao seu tempo e como expressão renovada da fé, a obra da escultora faz parte do património cristão português, pelo que deve ser conhecida, conservada e divulgada, para que se mantenha viva e actuante. Emília Nadal

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