Porto: Homilia de D. António Augusto Azevedo na celebração da Paixão do Senhor

Nesta tarde de Sexta-feira Santa somos convidados a colocarmo-nos em atitude de silêncio e adoração diante da cruz em que Nosso Senhor Jesus Cristo deu a vida pela salvação da humanidade. O mistério desta cruz não só está diante de nós, mas nos envolve e abre-nos ao sentido último e definitivo da nossa existência.

No relato da Paixão evocamos os passos decisivos da história da salvação e da revelação de Deus. Ao apresentar-se como aquele que nasceu e veio ao mundo «para dar testemunho da verdade» (Jo 18,37), Jesus ajuda-nos a entender aqueles acontecimentos como momentos da verdade. A verdade da sua própria pessoa, o Messias que realiza em plenitude a missão de Servo de Javé que suporta a dores e males da humanidade; a verdade do seu Reino que não é deste mundo nem se impõe pela força das armas; a verdade do seu sacerdócio que se exprime na entrega da própria vida como sacrifício de expiação. No fundo, a verdade de Deus que na pessoa do Filho carrega os nossos sofrimentos,expia o nosso pecado,nos liberta e reconcilia.

A Paixão do Senhor constitui também revelação ímpar da verdade do próprio homem. Na figura de Jesus apresentado à multidão – Ecce homo – e no rosto do crucificado reconhecemos os ícones mais eloquentes de uma humanidade desfigurada. Vemos aí representados os rostos de todos os seres humanos vítimas de injustiças, da violência, da tortura, as vítimas inocentes do terrorismo, da exploração, de maus tratos ou de abandono. Humanidade sofredora, humanidade crucificada mas humanidade redimida, com futuro.  

No rosto de Jesus transparece a imagem de um Deus compassivo perante a humanidade ferida, de um Deus solidário com todos os rejeitados. É o testemunho de que «na verdade nós não temos um Sumo Sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas» (Heb 4,15). Esta é a verdade mais profunda sobre Deus e sobre o homem que a Páscoa proclama.

Mas a força desta verdade depara-se tantas vezes com o mesmo ceticismo de que Pilatos é porta-voz ou com a mesma insensibilidade da multidão. Então como hoje estão à vista os riscos que constituem para a abertura à verdade quer o autoconvencimento de quem está instalado no seu poder ou o da razão individual como único critério da verdade, quer a irracionalidade das multidões suscetíveis de todas as manipulações.

Na cruz descobrimos a verdade sobre Deus e sobre nós próprios, mas nela encontramos também a grande palavra de Deus perante o mistério do mal. Essa realidade que se reveste de tantas modalidades, que afeta a nossa existência, envenena o mundo e obscurece a imagem de Deus. Neste dia reconhecemos que o mal não pode simplesmente ser ignorado e tomamos mais consciência da nossa própria culpa. Percebemos sobretudo como Deus não permaneceu silencioso ou impotente perante a monstruosidade do mal.

A cruz lança nova luz sobre a dimensão do mal e a imensidão da misericórdia divina. A força do amor manifestado por Jesus Cristo na cruz é que verdadeiramente salva o homem e o liberta de todo o mal. A força do bem que brota do coração do crucificado é maior, mais poderosa, que todo o mal. Na cruz «a obscuridade e absurdo do pecado encontram-se com a santidade de Deus» (Bento XVI).

Na narração dos instantes finais da vida de Jesus, o evangelista São João refere o seu último dito: «Tudo está consumado» (Jo 19,30). Esta palavra Jesus manifesta a sua consciência de ter cumprido até ao fim a vontade do Pai, atesta o seu entendimento da própria vida como obediência ao Pai, de confiança sem limites no seu amor. Antes tinha dito: «Tenho sede» (Jo 19,28). Esta sede é sinal de carência física acrescida da secura do abandono e da rejeição, mas é sobretudo sinal de que Jesus, como todo o que está no fim do seu caminho, está sedento e aspira a ser acolhido nos braços do Pai da misericórdia. A partir destas derradeiras palavras de Jesus, este dia, celebrando a paixão e a morte, é celebração da vida e da esperança. Da vida vivida com sentido até ao fim; da vida dada por amor; da vida entregue a Deus e por isso cheia de esperança e de futuro. Com inspiração na morte do Redentor, que a morte humana seja sempre digna, entrega amorosa nas mãos do Pai, abertura confiante à vida em plenitude que só Deus pode dar.

Diante da cruz em que o Salvador do mundo deu a vida por nós, rezamos com o Papa Francisco: «Ó Cristo, pedimos-te que nos ensines a nunca nos envergonharmos da tua cruz, a não a instrumentalizar mas a honrá-la e adorá-la porque com ela tu nos manifestaste a monstruosidade dos nossos pecados, a grandeza do teu amor, a injustiça dos nossos julgamentos e o poder da tua misericórdia. AMEN».

Porto, 30 de março de 2018           

D. António Augusto de Oliveira Azevedo

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